quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

LETRA DE MÉDICO


No passado 12 de dezembro do ano em curso, a professora Zilda Carloni [@ProfZi] publicou um interessante microconto na rede social Twitter. Conta-nos ela que “O médico foi esquiar, se perdeu nas trilhas e morreu. Até escreveu “socorro” na neve, mas ninguém entendeu sua letra”. Tratando-se de uma ficção, dispensam-se as lamentações; sobra-nos, contudo, a constatação de um problema ainda hoje muito recorrente: a ilegibilidade da letra dos nossos valiosos e prestimosos médicos. Na verdade, este meu texto já estava escrito. Alterei-o para nele incluir esta menção ao oportuno tuíte da nobre professora.
Todos os dias eu leio os jornais lusitanos Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Para além do interesse pessoal em inteirar-me dos fatos, inclusivamente daqueles transcorridos no Brasil em contraponto à imagem brasileira no exterior, procuro apreender nas entrelinhas o modo de expressar-se num português não contaminado por alguns detestáveis vícios.
No dia 17 de janeiro de 2016, a edição informatizada do Jornal de Notícias publicou um artigo escrito por Afonso Camões, intitulado Letra de Médico. Com toda a avidez a ele fui, contudo não vi muito sobre o apelativo tema. O artigo traçava considerações sobre o preço internacional do petróleo, que em Portugal desenhava-se em curva descendente muito mais íngreme que a do preço da gasolina. Quando ele examina o que sobre o assunto dizem as empresas petrolíferas, constata exageradamente que as suas explicações são tão enigmáticas quanto a letra de médico, isto é, mal explicam e não convencem.
O tema é sério e entre nós já mereceu a atenção do legislador federal. Em 1973 foi editada a Lei Federal n. 5.991/73, cuja alínea “a” do artigo 35 dispõe que apenas se aviará a receita “que estiver escrita a tinta, em vernáculo, por extenso e de modo legível, observados a nomenclatura e o sistema de pesos e medidas oficiais”. De outro lado, o Código de Ética do Conselho Federal de Medicina (CFM) não se tem descurado do assunto. Proibiu ao “médico receitar, atestar ou emitir laudos de forma secreta ou ilegível, sem a devida identificação de seu número de registro no Conselho Regional de Medicina da sua jurisdição, bem como assinar em branco folhas de receituários, atestados, laudos ou quaisquer outros documentos médicos. (Cap. 3, art. 11).”
Repetindo um ritual de mais de doze anos, estive em 2016 com o meu urologista. Da nossa conversa resultou uma requisição para a realização de uma tomografia. Quando vi o que o excelente profissional escrevera, percebi que quem o descodificasse teria automática habilitação para interpretar a Pedra da Roseta. Fi-lo refletir sobre essa minha “dificuldade”, ele a compreendeu e prontamente refez a requisição, usando, agora, hieróglifos bem mais inteligíveis.
Coincidentemente, na mesma altura fui constituído estafeta entre médicos que me assistiam. A minha supercapaz gastroenterologista redigiu um relatório para ser entregue à minha não menos preparada dermatologista, em resposta a um pedido de esclarecimento formulado pela última. Creio que nem mesmo a autora do relatório o leria se, fora do contexto, o documento lhe fosse apresentado inopinadamente por outrem. Nele o vocábulo enzimas tanto se parece com “funções”, com “em coma”, com “níveis”, mas jamais com “enzimas”. Pedi ajuda a um amigo versado em hebraico, e assim produzi uma tradução alternativa para ser usada, se a minha dermatologista não entendesse o relatório produzido pela sua colega. Afinal, a destinatária é médica sem especialização em adivinhas.
Quando eu tinha uns doze anos de idade, recebemos em casa uma carta enviada pelo meu avô materno à minha mãe. O meu avô não era médico, era um sábio agricultor que mal sabia escrever. Morava no campo. Ao final da missiva, ele dizia à minha mãe: envio-te uma Benção. Com esforço e muito boa vontade podia ler-se a frase quase toda, mas não completamente, pois havia um sério problema com a mencionada palavra Benção. A Benção não chegava a ser uma maldição, contudo a sua inicial B fraturava-se em duas estruturas descontínuas, apesar de mutuamente próximas. A da esquerda formava uma haste quase vertical, porque ligeiramente pendente para a direita [I]. A outra, à direita, confundia-se com dois semicírculos empilhados, como se o superior estivesse a cavalgar sobre o inferior, ambos com a abertura voltada para a esquerda à moda de duas microscópicas baías [3], tudo a induzir-nos que a letra maiúscula bê se havia transformado no numeral treze [13]. Para aperfeiçoar o mal-entendido, as demais letras formadoras da palavra [enção] insistiam em fazer-nos lembrar do substantivo plural onças. Conclusão: tínhamos receio de que o meu avô tivesse tentado enviar-nos as tais “13 onças”, que até hoje não nos chegaram, graças a Deus, provavelmente à conta de recusa dos Correios.
Na acepção artística do bem escrever à mão, eu próprio não tenho caligrafia e por isto já paguei o preço da desclassificação num importante concurso público. Apesar de na altura dominar bem o assunto programático, dei-me mal. Nenhuma banca examinadora se iria munir de lupas e/ou valer-se de expertos para assim poderem perceber o que um ignoto candidato dissertaria misteriosamente numa prova em que se avaliam simultaneamente o conteúdo técnico-jurídico e a expressão em língua portuguesa. É claro que os examinadores não iriam gastar o seu precioso tempo na tentativa de repetir o que antes já fizera o famoso Jean-François Champollion. Por que o fariam?
Magno R Andrade
@magnoreisand – siga-me no Twitter

domingo, 10 de dezembro de 2017

Expressões Partitivas e Concordância Verbal

Como o próprio nome diz, "concordância" é harmonia. Mas, seja na língua coloquial ou formal, nem sempre a combinação entre sujeito e verbo acontece de maneira apropriada. É comum que o verbo apareça no singular, quando deveria estar no plural, ou que esteja no plural, quando deveria estar no singular.
Veja esses exemplos:
"A maioria dos atores são moradores da própria favela".
Sabe-se que, se o sujeito é "A maioria" (e não "A maioria dos atletas", "A maioria dos deputados", "A maioria das mulheres" etc.), o verbo deve ficar no singular: "A maioria preferiu ficar na sala"; "A maioria quer mudanças"; "A maioria gostou do filme".
A dúvida ocorre quando termos como "maioria" ou "parte" (e outros de mesma natureza) vêm seguidos de especificadores postos no plural. Nesse caso, o que decide a questão não é uma regra rígida, inflexível; é o bom senso. A escolha da forma verbal depende basicamente do que se quer enfatizar, ressaltar.


Em "A maioria dos jornalistas mostrou preparo para sabatinar o candidato", a opção por "mostrou" enfatiza a noção de conjunto, de grupo, representada pela palavra "maioria". Essa é a concordância lógica, já que é da norma geral que o verbo concorde com o núcleo do sujeito.
Caso se optasse por "A maioria dos jornalistas mostraram...", dar-se-ia destaque para os formadores do grupo ("os jornalistas"). A questão fundamental é saber se de fato há necessidade de enfatizar os formadores do grupo, já que a concordância natural é feita com o verbo no singular. Formas como "A maioria dos eleitores compareceu" ou "Grande parte dos motoristas desconhece o básico do básico das leis de trânsito" talvez soem mais naturais do que "A maioria dos eleitores compareceram" ou "Grande parte dos motoristas desconhecem...".


A coisa pode mudar de figura quando se trata de verbos como "ser", "estar", "ficar" etc. Com eles, a obediência à concordância lógica nem sempre gera bons resultados. Veja-se a frase citada no início deste texto ("A maioria dos atores são moradores da própria favela"). Siga-se a concordância lógica e se chegará a isto: "A maioria dos atores é moradora da própria favela".
Que tal? A decisão é de quem escreve ou fala, já que as duas formas ocorrem na língua padrão, mas a opção por "é", que concorda com "maioria", impõe a necessidade de estender o critério à concordância do predicativo ("moradora"), o que talvez soe um tanto "estranho". Como quem efetivamente mora são os atores, parece que a opção por "A maioria dos atores são moradores da própria favela" é mais natural do que a opção por "A maioria dos atores é moradora...".


O que foi dito a respeito de "A maioria" se estende a "Boa parte", "A maior parte" etc. Frases como "A maior parte dos homens examinados é portadora da infecção" ou "A maioria dos trabalhadores dessas regiões está contaminada" talvez sejam naturalmente substituídas por "A maior parte dos homens examinados são portadores da infecção" ou "A maioria dos trabalhadores dessas regiões estão contaminados".
Insisto que a escolha é sua, mas a regra geral de concordância verbal é que o verbo deve concordar com o sujeito, em número (singular/plural) e pessoa (1a. , 2ª. ou 3ª. pessoa). Mas, como o uso da língua é muito amplo, existem algumas regras específicas.  Esse é o caso da concordância em orações em que há expressões partitivas, como “a maioria”, “a minoria”, “grande parte”.

“A maior parte dos colaboradores aderiu à greve.”(singular)

“Mais da metade dos funcionários não compareceram à reunião.” (plural)

Na primeira oração, o verbo está no singular; na segunda, está no plural. Ambas corretas.

A explicação para a ocorrência do verbo no singular ou no plural nesses casos, é que o verbo pode ser conjugado das duas formas.

“A menor parte dos participantes não gostou/gostaram do curso.”

“Boa parte dos integrantes concorda/concordam com a política do grupo.”

“Menos da metade dos monitores lembra/lembram daquela aluna.”

Mas há uma sutil diferença de sentido:

a)    conjugar o verbo no singular, dá ênfase à noção de conjunto, de grupo (foco na expressão “a menor parte”, “boa parte”, “menos da metade”).

b)    conjugar no plural, enfatizam-se aqueles que formam o grupo ( “participantes”, “integrantes”, “monitores”), ainda que esta seja a forma incomum de redigir esse tipo de oração.

Como recomendação, dê preferência ao uso do verbo no singular quando redigir orações com expressões partitivas, por ser a mais usual. Mas saiba que tanto a versão no singular quanto no plural são aceitas gramaticalmente.

Mãe Querida,

Há quase três anos, 30 de abril de 2017, vivenciamos juntas a triste partida do seu grande e inseparável companheiro, meu amado pai. Aos pr...